Friday, March 23, 2007

Ultimamente

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Série - Na minha e outras vozes.



Ultimamente não tenho conseguido escrever.

Agora mesmo, tomei água enquanto pensava nesse fato,
e no tempo que leva,
da cozinha ao corredor,
do corredor as teclas do computador,
e das teclas ao texto em pensamento

(que na verdade nunca deixo de escrever,
o da tela em branco é que sim)
.

Acontece, que meus sentidos curvam-se ao calor e a velocidade do dia
com entendimento e comoção,
mas então respondo a essa comoção e entendimento,
com um abafamento em mim e no mundo,
nutrido por um esquecimento terrível, que parece crescer
alimentado pelo meu próprio medo de vê-lo maior

(e que a beleza do mundo que me cerca diariamente)

- enquanto eu ando até a parada do ônibus,
rumo a faculdade, e outras pessoas que nunca vi, atravessam essa mesma rua
e seguem outra direção, ou dobram logo em seguida, e somem como aparecem, inteiras e ausentes, sem precisar explicar coisa de nada da vida delas.

Várias coisas aconteceram, misturaram-se pra que então,
esse momento dramático de média ou quase nenhuma escrita e aprendizado,
acontecesse, de fato.

Pouco escrever,

considerando não só
a proporção do que é escrito,
mas a validade e peso sutil das palavras,
que passa a preencher espaços vazios, paisagens nativas,
que se quer existiam,

e a sensibilidade e resistência
física e mental, diária,
da mente sob doses de insistência
do esquecimento e intolerância humana,

talvez não chegue a transcender.
Diante, de vista,
da capacidade talvez infinita do homem
de evasão da realidade.

Esse instante sem tanta inspiração,
calado, com o corpo e entendimento
amuado na mente, em mim,
na minha e outras vozes,

é também a voz rouca da fertilidade,
que goteja e anuncia a tempestade,
fruto de um trovão.

Thursday, March 22, 2007

Poema feito ontem

.






Conterrâneo de tudo

se de insistência apurada
O homem insistisse e existisse
por trocentos mil anos,
ou desistisse nesse minuto
e extingui-se trocentos mil outros,

talvez fosse ele
um difunto incógnito de pé,
num corredor instante antes
de ajustar-se ao chão,

ou talvez, um gigante naufragado
numa ilha deserta,
sonhando com a nebulosa
que nunca encontra seu olho na noite escura .


De todo,
rodeado por seculares nebulosas,
ou falido sob o chão mais impecável,

mesmo erguendo hangares recentes
e atlíssimos, de esquecimento
e intolerância:


o seu corpo presumível
atravessaria o vapor dia


conterrâneo de tudo quanto mais existiu.



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Tuesday, March 20, 2007

Neruda

Inicial

O dia não é hora por hora.
É dor por dor,
o tempo não se dobra,
não se gasta,
mar, diz o mar,
sem trégua,
terra, diz a terra,
o homem espera.
E só
seu sino
está ali entre os outros
guardando em seu vazio
um silêncio implacável
que se repartirá
quando levante sua língua de metal
onda após onda.

De tantas coisas que tive,
andando de joelhos pelo mundo,
aqui, despido,
não tenho mais que o duro meio-dia
do mar, e um sino.

Eles me dão sua voz para sofrer
e sua advertência para deter-me.
Isto acontece para todo o mundo,
continua o espaço.

E vive o mar.

Existem os sinos.